Ovos Gorados, Tejus e outros seres e coisas sem história

Ruínas da chaminé da Usina Meio da Várzea

Duas coisas me trazem de volta a este blog antigo:

Primeiro, uma conversa, ano passado ou retrasado, com um certo doutorando, hoje, doutor, que me disse que não disse em sua tese (rsrs) que eu chorava pelas ruínas do Engenho Velho da Várzea.

A segunda, (e fica o dito pelo não dito) é que eu choro, sim. E choro pelas ruínas imateriais, principalmente. Por isso, voltei para fechar essa lamentação, essa gestalt, com uma frase:

Não há mais Arruado.

Essa crônica servirá, de algum modo, para defender essa sentença…

***

1 – Ovos gorados

Vocês que já foram crianças, como eu, me digam, quando brincávamos de esconde-esconde, a gente gritava:

“Golou o ovo!”

ou, “Gorou o ovo!”?

Creio que gritávamos a primeira frase, mas como corruptela da segunda.

Minha vizinha, Dona Angelina, às vezes lamenta os ovos gorados, das suas galinhas.

Golar o ovo, na brincadeira dos bons tempos, era dizer o nome errado, da pessoa que estava escondida. Frustava quem buscava, tal qual a frustração de Dona Angelina, ao remexer no ninho dos ovos gorados, ou, malogrados, como afirma o dicionário online.

Das coisas malogradas também tratava o poeta alagoano e universal, Jorge de Lima, no “Canto Quinto, trecho final do poema VII” do livro ‘Invenção de Orfeu’:

Estão aqui as pobres coisas: cestas

esfiapadas, botas carcomidas, bilhas

arrebentadas, abas corroídas,

com seus olhos virados para os que

as deixaram sozinhas, desprezadas,

esquecidas com outras coisas, sejam:

búzios, conchas, madeiras de naufrágio,

penas de ave e penas de caneta,

e as outras pobres coisas, pobres sons,

coitos findos, engulhos, dramas tristes,

repetidos, monótonos, exaustos,

visitados tão só pelo abandono,

tão só pela fadiga em que essas ditas

coisas goradas e órfãs se desgastam.

2 – Tejus do Arruadinho

Diz o poeta Jorge de Lima, em outro poema:

“Não olvideis escribas os somenos…”

Olvidar não se pode, nessa crônica sobre coisas irrelevantes, dos tejus entocados nos quintais, e de como, com astúcia e perícia, esses pequenos lagartos sugam os ovos nos ninhos a qualquer descuido das galinhas chocas,

Se descoberto, o meliante prende o ovo na bocarra, sem que se fure ou se quebre a casca frágil, e bate em retirada, levando o ovo furtado para seu esconderijo e lá o devora.

Dona Angelina, aborrecida, pragueja contra os tejus impertinentes: Se eu pego, vai pra panela!

Mas, voltemos ao terreno movediço das analogias:

Vejo dona Nininha (Angelina) desolada, diante do ninho da galinha choca, a lamentar os ovos, casulos ocos e sem vida, e logo me vem a lamentação, tema dessa crônica:

A vida cultural da velha vila de operários da usina, esvaziada pelo tempo que passou. O Tempo,… esse grande lagarto da mudança, sugou as festas antigas, os brincantes, as devoções, tudo arrostado pela goela sedenta da chamada, modernidade.

***

Desde de 2014, remexo o ninho de ovos gorados em que se transformou o Arruadinho do Engenho Velho.

E tenho até uma teoria para explicar a frustrante transformação desse lugarejo erguido à margem do antigo caminho da Várzea:

a teoria marxiana das crises cíclicas do capitalismo. rsrsrs

Podem rir… Este é um parágrafo para o alívio cômico, como aquele momento da anedota em meio ao velório. Aliás, conheci um desses piadistas de funerais, que fazia todos rirem, até os parentes do defunto. Eram outros tempos…

Pois bem… voltemos ao enterro, digo, à crônica das coisas goradas:

Meus 13 leitores, mesmo os que não leram nada de Marx, ou quase nada, feito eu, devem saber das tais crises cíclicas do capitalismo. E de como esse danado estertora, chega a se pensar que morreu, como na crise de 1929, e o bicho-capital ressurge mais forte e voraz. Os marxianos esperam a derradeira crise. Talvez, ela esteja muito próxima, tal e qual a segunda vinda do Cristo.

Na esteira dessa crise, a velha Usina Meio da Várzea foi sucumbindo, e, em meados de 1937, faliu. Fechada a usina e devidamente desmontada, restaram os posseiros, os sitiantes, nas terras que passaram das mãos dos Barros Barreto para as da família Amazonas.

O fim da usina fez com que a relação capital/trabalho quase voltasse ao modo pré-capitalista. Famílias produziam seu sustento, feijão, batatas, macaxeira, hortaliças, etc. pagando uma espécie de permissão de uso da terra, aos proprietários de então. (Não esqueçamos que esses sitiantes já existiam, espalhados pelo engenho velho, desde os idos de 1870.) Essa relação capitalista/trabalhadores resistiu até meados de 1993. Mas, no meio do caminho, houve a crise da segunda grande guerra, (1939 – 1945), momento em que, contam os mais antigos, o engenho recebeu até um acampamento das forças aliadas, (a confirmar).

Passada a crise, com o capitalismo retomando o seu avanço e predomínio, no ocidente, eis que grandes universidades vão surgindo pelo mundo. São Paulo e Rio de Janeiro criaram as suas, ao modo das parisienses. E o Recife decidiu lançar a pedra fundamental da sua “cidade universitária”. O capitalismo industrial precisava de mão de obra qualificada. Engenheiros, médicos, arquitetos, professores, surgiriam da reunião das faculdades espalhadas pelo centro do Recife, no novo campus, cuja pedra fundamental foi inaugurada nos idos de 1946.

Daqui podemos retornar ao que disse acima:

Começava ali o sumiço do Arruado.

Como assim?

Chegara a hora da desaparição daquela economia agrícola, daquela agricultura orgânica e familiar, que vicejava nos quatro cantos desse imenso quadrilátero irregular, em que foi sendo erguido o campus Recife da UFPE. Mudou tudo. Mudou a economia, mudaram os costumes, mudou aquela vidinha bucólica, de gente da roça: o uso de cavalos de montaria, as vacas leiteiras, as sambadas de coco, as festas dos Santos Reis.

Ao que parece, uma instituição, que vinha para desenvolver Pernambuco, para formar cientistas,(a tal mão de obra qualificada do novo Brasil industrial), não poderia conviver com aquele mundo antigo, de sitiantes iletrados. E, um belo dia, algum magnífico reitor decidiu proibir a criação de animais de grande porte, indenizar as lavouras dos sitiantes e desapropriar os terrenos onde seriam erguidos os primeiros prédios. Deu-se, então, o que eu chamei de a pequena diáspora de arruadenses.

Minha amiga Raíza,, estudante extensionista dedicada, que anda buscando as raízes das famílias desse lugarejo, eis um caminho para tua busca:

Muitos desses sitiantes, seus netos e bisnetos, estão espalhados pelas adjacências desta Cidade Universitária. Busque-os nas vielas da Santa Quitéria, nos becos do Sete Mocambos, na Vila Arraes ,no Ambolê, no Caxito e no Sítio dos Baracho. Tem gente em São Lourenço e Camaragibe e dizem que, dona Amara, professora do Grupo Escolar Barros Barreto, ainda vive, nonagenária, na Vitória de Santo Antão.

E me entendam, pelo amor de Deus, quando digo que não há mais Arruado. O poeta Drummond, no poema José, também disse que já não havia Minas Gerais.

E é nesse sentido, que expressei minha sentença inicial.

Claro que ainda há um Arruadinho, perseverando em existir, lutando contra a instituição que sugou sua cultura popular, sua agricultura familiar, sua vida de um mundo antigo. Porém, cabe aqui, enquanto analogia, o verso drummondiano que deixou a perplexidade para o pobre José, do famoso poema, e para todos os Josés e Marias, brasileiros e brasileiras, excluídos da história oficial, sejam quilombolas, campesinos, aborígenes, migrantes da seca:

Minas não há mais, José, e agora?

Respondamos, num coro dos invisíveis, que resistem nesse Arruadinho do Engenho Velho da Várzea:

Agora nos resta lutar!

Lutar contra o bicho-capital, que vai colapsar, com as mudanças climáticas, em sua crise derradeira, depois de sugar os recursos do nosso planetinha azul, como os tejus sugam os ovos nos ninhos! Lutar e vencer! Avante, companheiros!

E cantemos, com outro poeta, o Taiguara:

“Há um Sol nascente, avermelhando o céu escuro…”

É isso!

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